O Fim


Juntar numa só imagem a robustez do homem na fotografia e a ruína no sofá era e não era uma impossibilidade. Usar toda a minha força mental para unir os dois pais e transformá-los numa única pessoa foi uma tarefa insana, quase diabólica. E, no entanto, de repente senti (ou me obriguei) que eu era capaz de lembrar perfeitamente (ou de me fazer pensar que lembrava) o momento exato em que aquela foto tinha sido tirada, mais de meio século atrás. Fui até capaz de acreditar (ou de me fazer acreditar) que nossas vidas só aparentemente haviam escoado ao longo do tempo, que tudo estava de fato acontecendo simultaneamente.
Philip Roth, Patrimônio – uma história verídica

 Meu pai morreu no último dia 3 de junho. Eu não o vi nesse dia, estava a 10 mil km de distância. Estive fora do país nos últimos meses e não assisti a seu rápido declínio físico. Meu pai, que era também Flavio, sofria há dez anos do Mal de Alzheimer, essa doença terrível que destrói as lembranças de alguém bem antes que comece a lhe tomar a saúde física. Até bem pouco, dois ou três anos, sua condição física era boa, e só nos dois ou três últimos meses passou a não poder caminhar sozinho ou manter-se sentado sem apoio. Eu não vi nada disso e, de certa maneira, fico feliz por não tê-lo presenciado.
Procurei uma foto através da qual pudesse apresentar meu pai tal como o tenho em minha lembrança hoje, mas não a encontrei. Tenho essa foto digitalizada em meu computador, no Brasil. Terei de voltar para casa para resgatá-la e, no final de julho, publicá-la. Nessa foto, que data provavelmente de 1998 ou 1999, estamos os dois na área coberta da entrada de sua casa, em Porto Alegre. Estou sentado e ele de pé, ao meu lado, apoiado na parede, com um charuto na boca. Ele não fumava há décadas, mas levou à boca o charuto que eu fumava para “posar” para a foto.  Ele está forte, vigoroso, bonito. Sua pose denuncia algumas de suas melhores qualidades: o bom humor, o traço sociável.

No dia 30 de dezembro, um dia antes da viagem que me levaria a quase sete meses de ausência, e, portanto, a perder os momentos finais de sua vida, estive com ele pela última vez. Eu e minha filha fomos nos despedir dele. Sua doença não permitia mais que acompanhasse conversas longas ou breves, e com certeza a noção de tempo para ele estava há muito desaparecida, mas quando me aproximei para me despedir e dizer que estaria fora “por alguns dias”, mas que voltaria em seguida para visitá-lo, me disse: “então vou te esperar”. Ele não sabia mais quem eu era (com a exceção de breves momentos, em flashes cada vez mais raros de memória), ou quem era quem à sua volta, mas manteve na nossa última troca de palavras o mesmo cuidado com que sempre tratara todo mundo (embora não soubesse mais quem eu era, perguntava por vezes se o ‘Faveco’ já havia chegado da escola - o mesmo acontecia em relação à minha irmã -, reencontrando com mais facilidade, em sua fragmentada memória, o filho e a filha crianças e adolescentes que teve um dia). Deixei sua casa naquele dia emocionado e pela primeira vez me ocorreu que talvez ele não me esperasse voltar, talvez não pudesse me esperar.
Alguns dias antes eu havia passado algumas horas com ele, na véspera de Natal. Na sala de estar assistíamos a uma telenovela. Eu não sabia ao certo o que ele compreendia do enredo, se compreendia alguma coisa, mas para minha surpresa emocionou-se com uma cena em que a personagem, um homem, de pé, durante uma ceia natalina, pronunciava um discurso que celebrava a família ou a presença dos amigos. Aquele homem que fora o gigante e toda a referência de minha infância, e de quem eu não podia então mais do que imaginar que coisas passariam pela cabeça, lacrimejava, discretamente, como sempre agira. Fiquei impactado com aquilo: em seu cérebro e em seu coração ainda circulava algo que eu não sabia mais como sondar, que eu não podia mais ajudar a trazer à consciência, mas que estava lá. No momento seguinte, mudada a cena, iniciada alguma troca de frases entre nós, e aquela emoção surpreendente desapareceu.

O que sua doença tinha de mais terrível era o fato de cobrar um preço enorme, em termos de dedicação e esforço, daqueles que conviviam com ele no dia-a-dia, sobretudo sua mulher Clara, companheira dos últimos vinte anos, e minha querida Marisa, que alimentou e cuidou de minha família pelas últimas quatro décadas, que viu minha mãe morrer há 23 anos e que agora presenciava a morte do meu pai. Um esforço que não é apenas físico, mas que é também, e sobretudo, mental, o esforço de lembrar por dois, de lembrar - o que ele já não podia fazer – o lugar que tivera em nossas vidas. É colossal a necessidade que temos de que uma pessoa que participou de forma intensa e definitiva em nossa vida lembre pelo menos uma ínfima parte do que significa para nós. Mas ele não podia mais, logo era a tarefa, o dever de todos à sua volta lembrar em seu lugar.
Há muitos anos nossa comunicação adotara um padrão curioso, quase engraçado. Com maior regularidade passou a me tomar por seu irmão mais velho, Zeca. Começávamos a conversar e decorridos alguns minutos eu percebia que o tom da conversa mudava, de forma sutil, quase imperceptível, e ele passava a falar comigo como se tivéssemos tido os mesmos pais e uma infância, uma história em comum. Por anos me perguntei sobre esse “papel” que assumi, involuntário, e a explicação me parecia clara: fragilizado, substituiu em sua cabeça a imagem do irmão mais velho que o protegera na infância pela do filho que ali estava, a única figura masculina com que convivia regularmente nos últimos anos. A essa troca me habituei aos poucos e após algum tempo parei de contrariá-lo, de insistir em trazê-lo à realidade (por que, afinal de contas, essa seria a realidade se, para ele, não significava mais nada?). Passei a responder como me pedia: “onde estão o pai e a mãe”, me perguntava por vezes, e eu respondia (sua mulher e todos mais próximos a ele no dia a dia agiam do mesmo modo), antes de encaminhar a conversa em outra direção: foram visitar tia Olga em Pelotas, ou foram dar uma olhada na casa da praia, voltam no final de semana...  Outras vezes, enquanto ainda conseguia usar o telefone, me ligava em horas em que se sentia mais só, normalmente à tardinha, perguntando, por exemplo, onde eu (seu irmão) estava, o porquê da minha demora, como se me esperasse para algum compromisso agendado: “Tu não vais vir tomar café?”

É claro, nem todas as lembranças são de situações assim tão tranqüilas. Houve uma ocasião, possivelmente em 2007, em que me ligou no início da noite, enquanto eu voltava a Porto Alegre, em plena BR 116, dizendo que não conseguia entrar em casa. Surpreso, sem nem tentar verificar a origem da chamada, perguntei: mas como, onde estás?  Para meu desespero respondeu: “aqui na frente de casa, na Borges” (vivera parte da adolescência no edifício Ponche Verde, no centro de Porto Alegre!). Visualizei a cena: meu pai perdido no centro de uma grande cidade, à noite, em risco, incapaz de dizer quem era, e eu preso num engarrafamento a 30 km de distância! Na verdade, depois de alguns minutos de uma conversa desesperante e algo surreal, concluí que estava em sua casa, protegido, mas totalmente perdido, incapaz de reconhecer o próprio lugar em que morava. Pelo telefone, pedi que fosse até a porta da cozinha, não longe do telefone que deveria estar usando, que a abrisse e olhasse para fora, que assim reconheceria os cães, a parreira, o pátio, que estaria tudo bem então, que aquela era a casa onde tinha vivido nos últimos 40 anos. Relutou mas fez o que pedi, voltando depois ao telefone e me dizendo, constrangido pela situação: “tá tudo bem, minha cabeça é que está muito ruim” (efetivamente se perdera uma vez, à noite, e foi encontrado a vários quilômetros de casa, perto do Estádio Olímpico – estádio que havíamos freqüentado juntos quase toda semana, a partir dos meus seis ou sete anos de idade -, por seu vizinho Petry).        

Felizmente, diferente de outras vítimas de Alzheimer, meu pai não se tornou agressivo (com a exceção de alguns breves episódios, numa fase intermediária, momento em a perda de memória começava a se intensificar, há vários anos), tendo permanecido sempre a mesma pessoa terna e atenciosa com todos. Não lembro uma única vez em que tenha chegado para visitá-lo, em duas décadas, em companhia de minha ex-esposa, em que ele não a tenha saudado repetindo a mesma frase gentil: “Marta, sempre bonita!” Ou o carinho que tinha por suas três netas, para as quais sempre teve uma palavra, um adjetivo carinhoso. Minha filha, a mais nova dentre elas, chamava delicadamente, quando pequena, de sua “flor de maracujá”.
Meu pai foi bancário. Foi filho de Hugo e Julieta, irmão de Zeca e Antoninho, pai de Susana e Flavio, avô de Carolina, Daniela e Luíza, viúvo de Naima, companheiro de Clara e padrasto de Paula, e grande amigo de João.  Escrevo sobre ele em Oxford, numa manhã chuvosa, uma semana após sua morte, longe dele, longe de seu túmulo. Aguardarei ter em mãos a foto daquela manhã de 1998 ou 1999 para publicar este pequeno texto. 

Flavio M. Heinz

PS: o trecho em epígrafe está no livro de Roth, Patrimônio – uma história verídica, no qual o autor narra a história dos últimos tempos de convivência com seu pai, portador de um tumor no cérebro. Há anos li uma ótima crítica sobre esse livro e acalentei o desejo de lê-lo, o que, por uma razão ou outra, acabei não fazendo. Há algumas semanas, talvez ‘mexido’ pelas notícias que vinham do Brasil acerca do rápido declínio físico de meu pai, comprei o livro e o li. É um texto poderoso e tocante, íntimo e ao mesmo tempo universal. Terminei-o quatro dias antes do falecimento de meu pai.



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