Uma história pessoal da Guerra Fria fora do centro é possível? Flavio M. Heinz

 Em meio a dificuldades para, em aula, oferecer exemplos concretos sobre o ambiente social e político da Guerra Fria a estudantes brasileiros nascidos nas duas últimas décadas, lembrei-me de três episódios que marcaram a mim ou a minha família e que estão associados aos desdobramentos da Guerra Fria na América do Sul.   

(1) O primeiro, bem anterior ao meu nascimento, constituiu-se numa história omnipresente do romance familiar ao longo de décadas: o “exílio interno” que minha família materna havia experimentado no nordeste do país, na segunda metade dos anos 1940, uma espécie de punição oficiosa ao ativismo político de meu avô. 

Em 1945, o Partido Comunista vivia sua breve experiência de legalidade institucional, ainda sob a ditadura do Estado Novo. Meu avô era, à época, coletor federal em Encantado (RS), talvez o emprego público mais bem remunerado nas cidades do interior do Brasil. Abertamente comunista, e exercendo um cargo estável da administração, foi 'agraciado' pelo governo federal com sua transferência para uma cidadezinha no interior do longínquo estado do Ceará, Ipu, situada a mais ou menos 4 mil km de onde vivia, se estradas existissem à época ligando essas regiões. Foram semanas de viagem de navio pela costa brasileira até Fortaleza, e daí de trem até o destino final. Minha mãe, adolescente então, lá viveu com a família ao longo de 4 anos e testemunhou a militância política de meu avô.

                                                                Minha mãe, Naima, então com quinze anos, em Ipu (17/4/48).

O episódio mais marcante daqueles anos para minha família foi, provavelmente, o apedrejamento da sede da Liga dos Trabalhadores do Ipu, em fins de 1946, que meu avô ajudara a fundar, e de sua própria casa, por parte de uma multidão enfurecida de paroquianos, dirigida pelo padre local, notório personagem do anticomunismo católico da região. Os relatos sobre esse episódio e sobre a reação de meu avô   foram registrados em alguns trabalhos de história, aqui e aqui. O episódio terminaria por marcar por anos a trajetória da família e alimentaria o evidente ressentimento que minha mãe passou a nutrir pelas tomadas de posição políticas públicas de seu pai. Em 1949, meu avô foi transferido novamente, agora para um posto ainda mais distante: Lábrea, uma pequena cidade às margens do Rio Purus, em meio à floresta amazônica, e a vários dias, ou melhor, semanas, de navegação de quaisquer capitais ou cidades maiores. Decidido a visitar a cidade antes de aceitar a nova designação, viajou por semanas até o local de seu futuro posto profissional. Percebendo que sua situação e da família pioraria sensivelmente, que estariam ainda mais isolados em relação à família que ficara no sul (dois dos seus filhos não haviam seguido a família no Nordeste e permaneceram no Rio Grande do Sul) e sem outra alternativa que não fosse renunciar às atividades políticas, pediu demissão do serviço público e voltou ao sul do país.    

 

                                Meu avô, Hugo Madureira Coelho, foto tirada provavelmente na primeira metade dos anos 1960. 

 (2)  Na primeira metade dos anos 70 meus pais eram membros de uma pequena classe média ascendente de funcionários do setor privado, cujo padrão de vida melhorara nos anos anteriores, com, por exemplo, acesso a automóvel e casa própria. Estimulados pelo câmbio favorável, começaram a tomar a estrada para curtas temporadas de férias nos países vizinhos, Uruguai e Argentina. Por certo, por vivermos na capital mais meridional do país, essas viagens eram economicamente viáveis e, portanto, uma ambição plenamente realizável. Lembro de várias delas. Em julho de 1973, pouco mais de um mês após a implantação da ditadura de Bordaberry no Uruguai, viajamos para aquele país. Falava-se a todo instante de Tupamaros, o grupo guerrilheiro urbano uruguaio mais conhecido, e lembro de meu pai anunciar, quando nos aproximávamos da fronteira, em tom grave: “agora não se fala mais essa palavra, ok?” Aquilo me pareceu muito sério.

Em algum lugar na estrada, rumo ao Uruguai, possivelmente em julho/73, mês seguinte ao golpe de Bordaberry. Bad timing.  

Não sei se foi nesta viagem, ou nas férias de verão seguintes, janeiro ou fevereiro de 1974, que teríamos uma ideia do medo e angústia presentes à época. Num posto de controle de fronteira, fomos informados para aguardar no carro, apenas minha mãe foi solicitada a descer e entrar no prédio. Não entendi o porquê daquilo, mas percebi imediatamente a apreensão de meu pai. Do carro, podíamos ver minha mãe em uma sala envidraçada, ao lado de uma parede com dezenas de pequenas fotos, enquanto um policial possivelmente averiguava se ela se encontrava entre os retratados. Anos depois elaborei a hipótese de que, diferente de meu pai, que era muito claro, a tez de pele de minha mãe, mais escura, acabava se assemelhando muito àquela dos uruguaios mais pobres que encontraríamos pelo interior do país, daí talvez que ela pudesse ter sido confundida pelos policiais como uma ativista política local, difícil saber. Nessa época, com o golpe no Uruguai e, meses depois, no Chile, meu pai escutava às vezes, na garagem, à noite, uma rádio de ondas curtas de Buenos Aires que fazia duríssimas críticas à repressão em curso naqueles países. A apreensão em ver minha mãe sob escrutínio da polícia uruguaia era, portanto, muito justificada. Não sei quanto tempo a “detenção” de minha mãe durou, talvez alguns minutos, talvez uma hora, mas ela terminou voltando para o carro e recebemos a autorização para seguir. Naquele momento entendi a gravidade da palavra ditadura, que já ouvira tantas vezes em casa, entre meus pais e, sobretudo, com meu avô. Na normalidade de casa, a ditadura brasileira não evocava nenhuma percepção especial ou diferente para uma criança, já nos uniformes, nas palavras repentinamente interditadas e na tensão da fronteira, ela adquiria um caráter totalmente diferente, real.

 

(3)  Meu terceiro exemplo não é exatamente um episódio típico da Guerra Fria, mas informa um pouco sobre a dinâmica das ditaduras de extrema-direita implantadas naquela conjuntura. Em 30/3/1982, dezenas de milhares de manifestantes de esquerda e sindicalistas haviam se reunido em atos por todo a Argentinao contra a ditadura, e em especial na Plaza de Mayo, em Buenos Aires, atos que foram seguidos por repressão e prisões em grande número. Tudo isso nos chegava pelos jornais e no canal de televisão que líamos e assistíamos em casa.

                                 

                                                                    Manifestação sindical em Buenos Aires, 30/3/1982

Três dias depois, em 2 de abril, tropas argentinas desembarcaram nas ilhas Malvinas/Falkland, e o que se seguiu todos sabem: reação britânica, escalada retórica (Gurkhas contra os "cuchilleros correntinos"), alinhamento norte-americano com o Reino Unido, mísseis franceses afundando navio britânico, um velho cruzador argentino dos anos 30 afundado por um moderno submarino nuclear britânico, desembarque e derrota argentina.

 


Mas antes de tudo se consumar, todos assistimos a incrível comoção pública produzida pelo anúncio da tomada das ilhas pelos argentinos e a aclamação ensandecida que recebeu o ditador-general-presidente, Galtieri, da multidão reunida na mesma Plaza de Mayo. No dia 2/4, multidões - partidos de esquerda inclusive - participaram, em êxtase nacionalista, do ato derradeiro de uma ditadura duramente contestada dias antes.O sentimento que me tomava era apenas um, e simples: perplexidade. Como era possível conectar esses dois movimentos antípodas e dar sentido à aclamação massiva de Galtieri? Para mim, tudo era incompreensão. Em abril de 1982 eu começara a cursar havia apenas algumas semanas minha graduação em História, em Porto Alegre, mas a história que se desenrolava à minha frente não parecia fazer muito sentido.

(No link, Galtieri ovacionado na Plaza de Mayo, 02/4/1982. As imagens são impressionantes: https://www.youtube.com/watch?v=_xqwNsmzCbM)

Na semana seguinte, durante o feriado de Páscoa, seguimos em família para a casa de praia. Foi um dos últimos feriados com a família, a partir daquele momento a camaradagem da universidade e a vida social de jovem adulto apresentariam mais atrativos que os feriados em família. Mas esse não foi um feriado como os outros, só se falava das Malvinas, da guerra iminente (britânicos estavam preparando sua frota marítima para retomar as ilhas), havia certa eletricidade no ar.  Na praia, à noite, vagando no silêncio e desolação de uma cidade de casas de veraneio vazias, conversávamos num grupo de amigos sobre os acontecimentos, quando um deles, um pouco mais jovem que eu, disse: “eu queria me alistar para lutar na guerra”. Com efeito, nos dias anteriores já se comentara sobre a existência de possíveis voluntários brasileiros desejando se juntar aos argentinos na luta, mas isso não deixava de passar por certa excitação juvenil, não parecia ser coisa a ser levada à sério.  Naquele momento, o que me parecia unificar a adesão das multidões, esquerda inclusa, à ação diversionista de Galtieri, e o ingênuo desejo de meu amigo, era um certo grau de irracionalidade política, estimulada por um discurso nacionalista de acionamento rápido e que turvava temporariamente as divergências profundas entre o campo da esquerda e a extrema-direita no poder. A mesma extrema-direita que fora implacável na perseguição e aniquilamento de aproximadamente 30 mil pessoas, em sua esmagadora maioria militantes ou simples simpatizantes de movimentos de esquerda, desde 1976, este sim um marco maior nos ecos da Guerra Fria na América Latina.   

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