VERMELHO, BRANCO E SANGUE: O TERROR BRANCO E O GRANDE MEDO, 1789-2021, por Beatrice de Graaf
Publicado por Age of Revolutions (ageofrevolutions.com / @AgeofRevs), em 15/01/2021
O “Terror branco” sempre foi o irmão gêmeo do “terror revolucionário” ou “terror vermelho”. Desde a Revolução Francesa, a história moderna testemunhou um desfile efervescente de rebeliões, insurreições, insurgências e golpes - mas eles quase sempre vieram aos pares, como, por exemplo, com o terror revolucionário (contra regimes feudais e autoritários) e o terror branco, violência contrarrevolucionária dirigida contra os supostos ativistas e dissidentes revolucionários (ou socialistas, após 1917). Aplicar essa dicotomia de terror à atual onda de insurreições (nos Estados Unidos e em outros lugares) nos ajuda a colocar sua dinâmica em um contexto histórico mais amplo.
Com a “ameaça vermelha” enraizada
na memória coletiva e nacional americana, é fácil esquecer que, para os
europeus, o “terror branco” sempre foi, como política de vingança, o parceiro
natural para ocorrências de “revoluções vermelhas”. O que conecta as duas faces
do terror é, historicamente, também evidente da perspectiva da história
europeia: “la Grande Peur”, o grande medo, e a dinâmica de autossugestão que o
acompanha, ou a adoção quase subconsciente de uma ideia derivada do próprio
consciente. Em seu famoso e ainda altamente relevante relato da Revolução
Francesa, La Grande Peur de 1789 (1932), o historiador francês Georges Lefebvre
introduziu a noção de pânico geral, o "grande medo" que incitou
camponeses e comunidades locais em todo o país a lançar um assalto ao sistema
feudal em 1789.
Alimentados por “fausses
nouvelles” (notícias falsas) e rumores, eles acreditaram que uma força
estrangeira queimaria suas plantações; ladrões estariam a caminho para queimar
suas casas e tudo isso faria parte de um “complô da fome” arquitetado por
aristocratas para matar a população de fome e forçá-la a voltar à obediência e
aquiescência. Camponeses, habitantes da cidade, mas também artesãos e membros
da burguesia, atacaram as propriedades da nobreza feudal e tentaram encontrar e
destruir documentos que registrassem privilégios feudais. Essa revolta inspirada
pelo pânico fez com que a Assembleia Nacional, em Paris, acabasse com o regime
feudal, dando início, naquele mesmo ano, à própria Revolução Francesa. As ondas
de insurreição que se seguiram, a derrubada da monarquia, a derrubada do
sistema de propriedades e a abolição dos privilégios feudais e expropriações
passaram a ser conhecidas como um "regime de terror" - um terror
ancorado para sempre na história pela mecanização, por Robespierre, do nó da
forca: a guilhotina.
No entanto, com suas execuções e
prisões, os comitês revolucionários imediatamente incitaram uma onda contrarrevolucionária
de terror branco que varreu o país em 1795. Essa onda não foi dirigida de cima.
Incluiu linchamentos pelas turbas, ataques descoordenados e protestos encenados
por parentes das vítimas e outras pessoas que se opunham aos jacobinos. No
entanto, no sul da França, a violência contrarrevolucionária foi organizada e
executada por associações clandestinas de monarquistas, que se preparavam para
caçar os jacobinos que participaram do Reino do Terror. O epíteto “branco”
derivou do fato de que eles adornavam seus bonés com cravos brancos, a cor da
monarquia Bourbon.
Para Lefebvre, os pivôs para a compreensão dessa explosão de violência foram os conceitos de medo social e autossugestão, que funcionaram para os dois tipos de violência. Obviamente, houve causas e transições mais profundas que amadureceram o clima para a rebelião, mas o gatilho para as insurreições foram as crenças autogeradas que permitiram aos atores históricos acreditar que seus piores medos já estavam se tornando realidade antes mesmo de acontecerem. Como Lefebvre observou, “agora, quando uma assembleia, um exército ou uma população inteira espera pela chegada de algum inimigo, seria muito incomum se esse inimigo não fosse realmente avistado em algum momento ou outro.”[1] [1]. Como uma ruptura tectônica e sem precedentes no tecido político, econômico, cultural e até histórico da sociedade, a Revolução Francesa passou a ser o modelo de todo pânico social desde 1789. A Comuna de Paris e o Terror Vermelho de 1917 apenas esculpiu ainda mais esse tropo primordial em história; a Guerra Fria traduziu a ameaça vermelha em uma verdadeira indústria literária e cultural, com peças de rádio e filmes invocando todos os tipos de conspirações iminentes - dias apocalípticos de ajuste de contas incluídos.
A Guerra Fria aprofundou e cimentou
a noção da “grande peur” de Lefebvre no coração dos partidos conservadores e
centristas nas democracias liberais do Ocidente. Lefebvre estava certo com seu
foco na “história de baixo” e a noção de autossugestão como o motor das
revoluções (em oposição à ideia de coordenação central desde o alto). No
entanto, ele poderia ter destacado seu efeito sobre os proponentes do
"terror branco" com muito mais ênfase, porque é aí que a autossugestão
e os medos primordiais de revolução estiveram principalmente presentes: com os
perpetradores do "terror branco" e sua política de vingança orientada
por uma perspectiva conspiratória.
De 1795 em diante, proliferou a
imagem da violência contrarrevolucionária contra supostos traidores, inimigos
do público, comunistas ou quinta coluna. Este fio conecta a onda de terror
branco de 1815 às ocorrências de terror branco na Rússia, Bulgária, Finlândia
e, posteriormente, na Grécia e até mesmo em Taiwan, no século XX. O terror tem
sido, além disso, e desde o final do século XVIII, uma característica da
violência contrarrevolucionária, à medida que evoluiu para o “terrorismo” como
discurso.
Poderíamos até argumentar que,
seguindo a teoria do cientista político David Rapoport sobre as “quatro ondas”
do terrorismo na história moderna (anarquismo, terrorismo anticolonial,
terrorismo de esquerda e terrorismo sagrado), cada onda de terrorismo sempre
foi acompanhada por sua onda paralela[2]
de terrorismo parasitário, reacionário e contrarrevolucionário que tenta
repelir, desfazer e deslegitimar as mudanças e transformações provocadas pelos
movimentos emancipatórios.
Em 1815, com o retorno da
monarquia dos Bourbon, o espectro de um retorno iminente de Napoleão (mesmo
depois de Santa Helena) foi recebido com um frenesi de derramamento de sangue
ultrarrealista no Midi[3].
Sob o pretexto de erradicar uma ampla conspiração antimonárquica, associações
clandestinas e monarquistas vingativos voltaram do exílio, organizaram ataques
no departamento do Gard e mataram milhares de supostos revolucionários e
bonapartistas. Protestantes aterrorizados (que foram destacados em muitas
ocasiões) escreveram em desespero ao ministro da polícia aliado em Paris,
reclamando de uma "seconde Barthelemy"[4].
Mas as forças de segurança e o governo em Paris permaneceram imóveis e
esperaram que o terror contrarrevolucionário passasse. Isso lhes convinha
melhor, em sua busca pela consolidação de seu poder.
A autossugestão da revolução antifeudal
no século XIX se traduziu em um medo de levantes e insurgências coloniais no
século XX, como os terroristas da OAS que realizaram seus ataques de
"terror branco" na França na década de 1960. Durante a Guerra Fria,
organizações terroristas de direita como Ordine Nuovo, na Itália, chegaram a
encenar atentados atribuindo-os a terroristas de esquerda como parte de sua
"estratégia de tensão", prelúdio da estratégia mais recente de
"aceleração" na década de 1970. Tomadas de controle e expropriações supostamente
atribuídas a comunistas sempre estiveram no topo da agenda dos caçadores de
bruxas anticomunistas, que em países tão dispersos como Espanha, República
Federal Alemã, Estados Unidos e Chile recorreram a contragolpes e assassinatos
políticos nas décadas de 1970 e 1980.
Ainda mais pertinente para hoje,
nos Estados Unidos e em outros lugares, a ideia do “terror branco” reacionário
se traduz no medo profundamente arraigado por agendas supostamente antibrancas
e, supostamente, socialistas. Aqui, o epíteto “branco” passou de indicar um
denominador político, cultural ou social para um tipo específico de protesto e
violência reacionária em seu desdobramento mais racial: “terror branco” passou
a ser equiparado ao terror “antinegro”. Em 6 de janeiro de 2021, ela se expôs
dessa forma com uma tentativa de golpe contra o próprio processo democrático,
ou seja, como uma forma de terror da supremacia branca dirigida contra uma
suposta tomada de poder pela elite socialista e de esquerda no país e,
principalmente, contra negros e pessoas de cor, em geral - agora com abraçadeiras
plásticas, um nó e uma forca improvisada em vez de uma guilhotina.
A autossugestão de Lefebvre a
respeito das turbas e massas se voltando, de maneira selvagem, contra um
inimigo que eles próprios sustentaram, inspirados por um pânico apocalíptico
que eles próprios geraram através de seus meios de comunicação, foi sempre mais
apropriada para o “terror branco”. Com sua direção reacionária e retrógrada,
foi e é muito diferente do impulso das revoltas originais, camponesas e de
cidadãos, impulsionadas por ideais emancipatórios contra um sistema injusto.
Beatrice de Graaf é uma renomada professora da Universidade de Utrecht, catedrática de História das Relações Internacionais. Seu trabalho, Fighting Terror after Napoleon: How Europe became secure after 1815, foi publicado na Cambridge University Press em 2020.
Texto base da tradução utilizou o Google Tradutor, revisado e corrigido por Flavio M. Heinz.
Leituras complementares:
Stephen Clay, “The White Terror:
Factions, Reactions, and the Politics of Vengeance” in Peter McPhee (Ed.), A
Companion to the French Revolution (Chichester, 2015), 359-377.
Beatrice de Graaf, Fighting
Terror after Napoleon: How Europe became secure after 1815 (Cambridge, 2020).
Georges Lefebvre, “O Grande Medo
de 1789, seguido de As multidões revolucionárias”. Petrópolis: Vozes, 2020.
David Rapoport, “The four waves
of modern terrorism,” in Audrey Kurth Cronin and James M. Ludes (red.),
Attacking Terrorism. Elements of a Grand Strategy (Washington, DC 2004), 46-73.
[1]
LEFEBVRE, Georges, The Great Fear of 1789. Rural Panic in Revolutionary
France, translated by Joan White (London 1973), 50. Edição brasileira: O Grande Medo de 1789, seguido de As multidões
revolucionárias. Petrópolis: Vozes, 2020, 248p.
[2] N
do T: “shadow wave” no original.
[3] N
do T: região sul da França
[4] N
do T: alusão ao massacre dos protestantes franceses por católicos, os
huguenotes, no dia de São Bartolomeu, 24 de agosto de 1572.
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