O Fim
Juntar numa só
imagem a robustez do homem na fotografia e a ruína no sofá era e não era uma
impossibilidade. Usar toda a minha força mental para unir os dois pais e
transformá-los numa única pessoa foi uma tarefa insana, quase diabólica. E, no entanto,
de repente senti (ou me obriguei) que eu era capaz de lembrar perfeitamente (ou
de me fazer pensar que lembrava) o momento exato em que aquela foto tinha sido
tirada, mais de meio século atrás. Fui até capaz de acreditar (ou de me fazer
acreditar) que nossas vidas só aparentemente haviam escoado ao longo do tempo,
que tudo estava de fato acontecendo simultaneamente.
Philip Roth, Patrimônio
– uma história verídica
No dia 30 de dezembro, um dia
antes da viagem que me levaria a quase sete meses de ausência, e, portanto, a
perder os momentos finais de sua vida, estive com ele pela última vez. Eu e
minha filha fomos nos despedir dele. Sua doença não permitia mais que acompanhasse
conversas longas ou breves, e com certeza a noção de tempo para ele estava há
muito desaparecida, mas quando me aproximei para me despedir e dizer que
estaria fora “por alguns dias”, mas que voltaria em seguida para visitá-lo, me
disse: “então vou te esperar”. Ele não sabia mais quem eu era (com a exceção de
breves momentos, em flashes cada vez mais raros de memória), ou quem era quem à
sua volta, mas manteve na nossa última troca de palavras o mesmo cuidado com que
sempre tratara todo mundo (embora não soubesse mais quem eu era, perguntava por
vezes se o ‘Faveco’ já havia chegado da escola - o mesmo acontecia em relação à
minha irmã -, reencontrando com mais facilidade, em sua fragmentada memória, o filho
e a filha crianças e adolescentes que teve um dia). Deixei sua casa naquele dia
emocionado e pela primeira vez me ocorreu que talvez ele não me esperasse
voltar, talvez não pudesse me esperar.
Alguns dias antes eu havia
passado algumas horas com ele, na véspera de Natal. Na sala de estar assistíamos
a uma telenovela. Eu não sabia ao certo o que ele compreendia do enredo, se
compreendia alguma coisa, mas para minha surpresa emocionou-se com uma cena em
que a personagem, um homem, de pé, durante uma ceia natalina, pronunciava um discurso
que celebrava a família ou a presença dos amigos. Aquele homem que fora o
gigante e toda a referência de minha infância, e de quem eu não podia então mais
do que imaginar que coisas passariam pela cabeça, lacrimejava, discretamente, como
sempre agira. Fiquei impactado com aquilo: em seu cérebro e em seu coração
ainda circulava algo que eu não sabia mais como sondar, que eu não podia mais ajudar
a trazer à consciência, mas que estava lá. No momento seguinte, mudada a cena,
iniciada alguma troca de frases entre nós, e aquela emoção surpreendente
desapareceu.
O que sua doença tinha de mais terrível
era o fato de cobrar um preço enorme, em termos de dedicação e esforço,
daqueles que conviviam com ele no dia-a-dia, sobretudo sua mulher Clara, companheira
dos últimos vinte anos, e minha querida Marisa, que alimentou e cuidou de minha
família pelas últimas quatro décadas, que viu minha mãe morrer há 23 anos e que
agora presenciava a morte do meu pai. Um esforço que não é apenas físico, mas
que é também, e sobretudo, mental, o esforço de lembrar por dois, de lembrar -
o que ele já não podia fazer – o lugar que tivera em nossas vidas. É colossal a
necessidade que temos de que uma pessoa que participou de forma intensa e
definitiva em nossa vida lembre pelo menos uma ínfima parte do que significa
para nós. Mas ele não podia mais, logo era a tarefa, o dever de todos à sua
volta lembrar em seu lugar.
Há muitos anos nossa comunicação
adotara um padrão curioso, quase engraçado. Com maior regularidade passou a me
tomar por seu irmão mais velho, Zeca. Começávamos a conversar e decorridos alguns
minutos eu percebia que o tom da conversa mudava, de forma sutil, quase
imperceptível, e ele passava a falar comigo como se tivéssemos tido os mesmos
pais e uma infância, uma história em comum. Por anos me perguntei sobre esse
“papel” que assumi, involuntário, e a explicação me parecia clara: fragilizado,
substituiu em sua cabeça a imagem do irmão mais velho que o protegera na
infância pela do filho que ali estava, a única figura masculina com que
convivia regularmente nos últimos anos. A essa troca me habituei aos poucos e
após algum tempo parei de contrariá-lo, de insistir em trazê-lo à realidade
(por que, afinal de contas, essa seria a realidade se, para ele, não
significava mais nada?). Passei a responder como me pedia: “onde estão o pai e a
mãe”, me perguntava por vezes, e eu respondia (sua mulher e todos mais próximos
a ele no dia a dia agiam do mesmo modo), antes de encaminhar a conversa em outra
direção: foram visitar tia Olga em Pelotas, ou foram dar uma olhada na casa da
praia, voltam no final de semana... Outras
vezes, enquanto ainda conseguia usar o telefone, me ligava em horas em que se
sentia mais só, normalmente à tardinha, perguntando, por exemplo, onde eu (seu
irmão) estava, o porquê da minha demora, como se me esperasse para algum
compromisso agendado: “Tu não vais vir tomar café?”
É claro, nem todas as lembranças são
de situações assim tão tranqüilas. Houve uma ocasião, possivelmente em 2007, em
que me ligou no início da noite, enquanto eu voltava a Porto Alegre, em plena
BR 116, dizendo que não conseguia entrar em casa. Surpreso, sem nem tentar
verificar a origem da chamada, perguntei: mas como, onde estás? Para meu desespero respondeu: “aqui na frente
de casa, na Borges” (vivera parte da adolescência no edifício Ponche Verde, no
centro de Porto Alegre!). Visualizei a cena: meu pai perdido no centro de uma
grande cidade, à noite, em risco, incapaz de dizer quem era, e eu preso num
engarrafamento a 30 km de distância! Na verdade, depois de alguns minutos de
uma conversa desesperante e algo surreal, concluí que estava em sua casa,
protegido, mas totalmente perdido, incapaz de reconhecer o próprio lugar em que
morava. Pelo telefone, pedi que fosse até a porta da cozinha, não longe do telefone
que deveria estar usando, que a abrisse e olhasse para fora, que assim
reconheceria os cães, a parreira, o pátio, que estaria tudo bem então, que
aquela era a casa onde tinha vivido nos últimos 40 anos. Relutou mas fez o que
pedi, voltando depois ao telefone e me dizendo, constrangido pela situação: “tá
tudo bem, minha cabeça é que está muito ruim” (efetivamente se perdera uma vez,
à noite, e foi encontrado a vários quilômetros de casa, perto do Estádio Olímpico
– estádio que havíamos freqüentado juntos quase toda semana, a partir dos meus
seis ou sete anos de idade -, por seu vizinho Petry).
Felizmente, diferente de outras
vítimas de Alzheimer, meu pai não se tornou agressivo (com a exceção de alguns
breves episódios, numa fase intermediária, momento em a perda de memória
começava a se intensificar, há vários anos), tendo permanecido sempre a mesma pessoa
terna e atenciosa com todos. Não lembro uma única vez em que tenha chegado para
visitá-lo, em duas décadas, em companhia de minha ex-esposa, em que ele não a
tenha saudado repetindo a mesma frase gentil: “Marta, sempre bonita!” Ou o
carinho que tinha por suas três netas, para as quais sempre teve uma palavra,
um adjetivo carinhoso. Minha filha, a mais nova dentre elas, chamava delicadamente,
quando pequena, de sua “flor de maracujá”.
Meu pai foi bancário. Foi filho de
Hugo e Julieta, irmão de Zeca e Antoninho, pai de Susana e Flavio, avô de
Carolina, Daniela e Luíza, viúvo de Naima, companheiro de Clara e padrasto de
Paula, e grande amigo de João. Escrevo sobre
ele em Oxford, numa manhã chuvosa, uma semana após sua morte, longe dele, longe
de seu túmulo. Aguardarei ter em mãos a foto daquela manhã de 1998 ou 1999 para
publicar este pequeno texto.
Flavio M. Heinz
PS: o trecho em epígrafe está no livro de Roth, Patrimônio – uma história verídica, no
qual o autor narra a história dos últimos tempos de convivência com seu pai,
portador de um tumor no cérebro. Há anos li uma ótima crítica sobre esse livro
e acalentei o desejo de lê-lo, o que, por uma razão ou outra, acabei não
fazendo. Há algumas semanas, talvez ‘mexido’ pelas notícias que vinham do
Brasil acerca do rápido declínio físico de meu pai, comprei o livro e o li. É
um texto poderoso e tocante, íntimo e ao mesmo tempo universal. Terminei-o quatro
dias antes do falecimento de meu pai.