PATRIOTAS SEM FRONTEIRAS: RUMO A UMA HISTÓRIA ATLÂNTICA DO RISORGIMENTO DURANTE A ERA DAS REVOLUÇÕES, por Alessandro Bonvini
Publicado originalmente por Age of Revolutions, em 05/4/20121: https://ageofrevolutions.com/2021/04/05/patriots-without-borders-towards-an-atlantic-history-of-the-risorgimento-during-the-age-of-revolutions/
Em 23 de junho de 1848, Giuseppe
Garibaldi embarcou para Nice com Andrea Aguyar, um ex-escravo negro do Uruguai,
para participar da Primeira guerra de independência italiana. Aguyar era membro
de um batalhão de recém libertos e lutara ao lado do “herói de dois mundos” no grande
cerco de Montevidéu (1843-1851). Uma vez na Itália, Aguyar seguiu Garibaldi nas
batalhas de Luino e Mortazzone (na região da Lombardia, ao norte), até que uma
granada o feriu mortalmente, em 30 de junho de 1849, quando lutava pela República
romana.[1]
Mapa da Itália mostrando a primeira
e a segunda fase da Guerra de independência italiana. (Março-Agosto de 1848)
A aventura patriótica que reuniu o condottiero (general) italiano e o soldado uruguaio encapsula a história global do Risorgimento (unificação italiana). Durante a Era das Revoluções, patriotas italianos adotaram atitudes cosmopolitas ao lado de seu objetivo de renascimento nacional. Eles acalentavam valores de fraternidade política para com seus semelhantes na Grécia, França, Península Ibérica e nas Américas e compartilhavam sonhos de revanche revolucionária contra poderes absolutistas, projetos utópicos de reforma e aspirações de emancipação que cruzaram o estado e as fronteiras imperiais que moldaram a ideia do próprio Risorgimento.
A eclosão das revoluções atlânticas, em 1776, inaugurou m período turbulento de mudanças por todo o mundo, no qual uma ampla gama de atores lutou por novas formas de soberania popular. [2] De acordo com Christopher Bayly, os revolucionários acreditavam em uma era de progresso histórico irrefutável.[3] Apesar de serem governados por reis, os patriotas italianos compartilhavam essa visão. Em meio aos levantes liberais (1820-1823),
Um jornalista carbonário anônimo
se perguntava: “Itália! Você se consideraria digna de estar com, não direi
Rússia, Espanha ou os grandes povos da América, mas ao menos com a nação do
Haiti?” [4] Na verdade, a noção comum que se espalhara no movimento do Risorgimento
foi de que a luta pela independência italiana era inseparável da luta mundial
contra a Santa Aliança liderada pela Áustria. Essa visão global demandava o
desenvolvimento de numerosos emaranhamentos intelectuais e a criação de redes
internacionais que vislumbravam projetos constitucionais, regimes alternativos
e a formação de exércitos de libertação. Liberais, radicais e republicanos italianos
tornaram-se parte da comunidade transnacional de revolucionários sem fronteiras.
Em 1796, a invasão do norte da
Itália por Napoleão estabeleceu repúblicas-clientes que se tornaram estados
satélites da França. Em função da mudança institucional, um grande número de
italianos alistou-se no exército bonapartista. Sob as bandeiras napoleônicas,
eles assimilaram a noção de nacionalidade que transcendeu barreiras linguísticas
e cruzaram limites municipais. Além disso, esses militares passaram a aceitar o
caráter internacional da revolução. De fato, expectativas de regeneração
política sobreviveram à derrota em Waterloo. Com a Grande Armée dissolvida,
cerca de cem oficiais italianos seguiram lutando nas colônias hispano-americanas.
Nesses contextos indisciplinados, o patriotismo crioulo refletia um modelo romântico
de republicanismo, baseado no paradigma do cidadão em armas que renovou antigos
ideais revolucionários.
Durante os levantes dos anos
1820, a mobilidade global do Risorgimento espalhou-se pelo globo. Devido à
Restauração absolutista que se seguiu ao colapso dos regimes constitucionais de
Nápoles e Turim, o exílio era a derradeira possibilidade de se perseguir
objetivos revolucionários. Aproximadamente oitocentos liberais chegaram à
Espanha onde se misturaram a sociedades patrióticas locais, publicaram jornais
reformistas e formaram legiões para apoiar o regime constitucional. Enquanto
isso, cerca de cem patriotas mudaram-se para a Grécia. Alistando-se no exército
de Alexander Mavrokordatos, eles lutaram com os gregos pela independência nacional
face ao domínio otomano, bem como para proteger a Cristandade contra o Islã.
Aparentemente, o conde Luigi Porro di Lambertenghi definiu a batalha dos gregos
como uma “causa sagrada”. [5] Sob esta luz, o filelenismo e o filo-hispanismo
eram sentimentos simétricos de uma regeneração mediterrânea baseada em
antiabsolutismo, autodeterminação e cooperação entre “nações irmãs”.[6]
Apesar da derrota dos regimes constitucionais, a emergência da internacional liberal serviu como plataforma para a organização do movimento da Jovem Itália. Utilizando redes clandestinas preexistentes, Giuseppe Mazzini conseguiu baseada no exílio da Itália. Seu gênio visionário transformou o nacionalismo italiano em um movimento internacional liderado por uma multidão de agitadores. Esses grupos revolucionários associaram-se a insurreições antimonárquicas em outros países, fomentaram planos para invadir a Itália desde o exterior, fraternizaram com organizações americanas e europeias similares e terminaram por se transformar na vanguarda do republicanismo de meados do século XIX. No começo da década de 1840, havia cerca de trinta ramificações da Jovem Itália espalhadas pelo mundo atlântico. [7] A Sociedade mazziniana dirigia um grande número de republicanos, incluindo simpatizantes franceses e poloneses, apoiadores ingleses, associados sul-americanos, parceiros hispanos e norte-americanos. Figuras eminentes destacaram-se nesses grupos, como o escritor Bartolomeu Mitre, o radical William James Linton, o político Alexandre Ledru Rollin, e o general Juan Prim. Em fevereiro de 1849, quando foi proclamado o nascimento da República Romana, republicanos atlânticos celebraram o triunfo de Mazzini como o início de uma era dourada para os direitos das “nações oprimidas”.
Os italianos trouxeram do
exterior exemplos e ideias em seu movimento de volta à casa. As revoluções
deram impulso considerável à impressão; panfletos, artigos e traduções
reverberaram por toda a parte, conectando a Itália ao resto do mundo. Leituras
da Constituição dos Estados Unidos influenciaram a cultura institucional inicial
do Risorgimento. Por exemplo, literatos como Carlo Botta e Giuseppe Compagnoni aclamaram-na
sinceramente, e consideraram o sistema americano, mais do que o francês, um
modelo virtuoso para legitimar a democracia.[8] Mais tarde, cópias da
Constituição de Cádiz de 1820 monopolizaram os mercados editoriais napolitano e
piemontês, enquanto catecismos e petições públicas solicitando reformas sociais
explicitamente a invocaram. Patriotas italianos discutiam o liberalismo
britânico, destacando seu equilíbrio avançado entre direitos individuais e
ordem política.
Além disso, mesmo exemplos
radicais foram trazidos à discussão. A Revolução Haitiana era frequentemente
citada para discutir a abolição do tráfico escravo e o fim do colonialismo, e
contestações anti-imperialistas das decisões tomadas no Congresso de Viena
(1815-1816).[9] As revoluções hispano-americanas também estavam no centro das
atenções durante o Risorgimento. Desde o nascimento das novas repúblicas, uma
série de crônicas e relatos fora publicada na Itália, abrindo um debate sobre questões
variadas como o modelo de cidadania nacional, soberania popular e o
funcionamento das instituições políticas. Guglielmo Pepe, entre outros, argumentou
que as Américas eram o “centro do apoio à liberdade” e os “decrépitos
despotismos da Europa” seriam logo derrotados. [10] Restaurando estereótipos da
“lenda negra” do período iluminista, o anti-Bourbonismo moderno tardio infiltrou-se
no republicanismo crioulo sul-americano. [11] Essas experiências facilitaram a
troca de ideias. Através do Atlântico, patriotas italianos comunicaram-se com intelectuais
ilustres, trocavam correspondência com funcionários de governos estrangeiros, eram
convidados a escrever para jornais estrangeiros ou ajudaram a fundar outros. O
que emergiu foi uma esfera pública italiana baseada na diáspora,[12] que
discutiu questões sobre uma nação imaginada, seu futuro modelo institucional e
papel geopolítico, políticas de livre-comércio e alianças políticas. Graças a
esses encontros, elites ocidentais se familiarizaram com o movimento sócio-político
do Risorgimento e se contrapuseram aos governos absolutistas Habsburgo e Bourbon.
Os fluxos culturais não eram unidirecionais.
Desde o fim do século XVIII, as doutrinas dos reformadores iluministas italianos
eram reconhecidas por intelectuais europeus e americanos. Os escritos de Cesare
Beccaria sobre o governo e o sistema de justiça, por exemplo, moldaram a lei americana.
As contribuições de Gaetano Filangieri permearam profundamente a teoria
constitucional na Nova Granada. [13] Na era pós-napolêonica essas dinâmicas se
intensificaram. As teorias de Filippo Buonarroti influenciaram movimentos democráticos
e pós-jacobinos resilientes; as reflexões de Giuseppe Pecchio sobre o estado grego foram trazidas à
discussão mediterrânea; as argumentações de Orazio De Attellis sobre o federalismo
moldaram a agenda dos liberais mexicanos. Durante os anos 1830, Giuseppe
Mazzini tornou-se a voz de inspiração dos movimentos nacionalistas emergentes
no mundo. Sua influência foi além de seu país, ganhando impulso das capitais
europeias à periferia do mundo atlântico e inspirando movimentos nacionalistas
nascentes, como a Jovem América, Jovem Argentina e Jovem Polônia. Graças à sua abordagem teórica não sofisticada,
o pensamento de Mazzini foi particularmente atrativo para uma geração de republicanos
que abraçaram sua ambição de perseguir demandas nacionais progressistas, especialmente
em relação a sufrágio universal e justiça social. [14] Este meio contribuiu
para a consolidação do mito do Risorgimento e de seus heróis – acima de todos,
Garibaldi – na comunidade global.[15]
Um leitmotiv do patriotismo
italiano era a convicção de que a Itália seria revivida apenas em um mundo
regenerado de nações independentes. Aventuras, exílios e voluntários conceberam
sua causa como parte da luta pelo progresso humano. Embora a locução “liberdade
vs tirania” possa parecer simplista, ela se provou extremamente poderosa em
criar solidariedade internacional entre movimentos liberais e republicanos. [16]
Os revolucionários do Risorgimento rejeitaram qualquer conjectura acerca da
categoria convencional de “excepcionalismo italiano” ao adotarem práticas e
estratégias que remodelaram o universalismo do Iluminismo e trazerem à frente
novas formas de internacionalismo, que se tornariam típicas do século XX. Em um período de aventuras românticas, redes
clandestinas e ideais florescentes, conectar a vida global dos revolucionários com
os eventos de seu próprio tempo oferece a possibilidade de refletir sobre um
momento crucial da história italiana. Além disso, permite-nos repensar o
Risorgimento, seus atores e modelos ideológicos, à luz das grandes transformações
desencadeadas pelas revoluções atlânticas.
Alessandro Bonvini é research fellow da Scuola Superiore Meridionale, em Nápoles, Itália. Ele é Ph.D. pela Universidade de Salerno, em co-orientação com a Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá (Colombia). Foi Max Weber Fellow do European University Institute (Florença) e pós-doutorando do German Historical Institute (Roma). Seu projeto atual de livro trata do patriotismo do Risorgimento no mundo atlântico.
Tradução: Flavio M. Heinz
Notas:
[1] Alfonso Scirocco, Garibaldi: battaglie, amori, ideali di un cittadino del mondo (Roma-Bari: Laterza, 2001), 165.
[2] Ver Robert P. Palmer, The Age of the Democratic Revolution: A Political History of Europe and America, 1760-1800 (Princeton: Princeton University Press, 1959); David Armitage and Sanjay Subrahmanyam, eds. The Age of Revolutions in Global Context, c. 1760-1840 (Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2010).
[3] Christopher B. Bayly, The Birth of the Modern World, 1780-1914: Global Connections and Comparisons (Oxford: Blackwell, 2004), 11.
[4] Il Raccoglitore Romagnolo, 30 March 1820.
[5] Carta de Luigi Porro di Lambertenghi, busta 603, no. 42, Museo Centrale del Risorgimento di Roma.
[6] Ver Maurizio Isabella, Risorgimento in Exile: Italian Émigrés and the Liberal International in the Post-Napoleonic Era (Oxford: Oxford University Press, 2009); Zanou, Konstantina, Transnational Patriotism in the Mediterranean, 1800-1850: Stammering the Nation (Oxford: Oxford University Press, 2018).
[7] Franco Della Peruta, Mazzini e i rivoluzionari italiani. Il partito d’azione, 1830-1845 (Milano: Feltrinelli, 1974), 347-355; Clara M. Lovett, The Democratic Movement in Italy, 1830-1876 (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1982), 67-90.
[8] Gian Luca Fruci, “Democracy in Italy From Egalitarian Republicanism to Plebiscitarian Monarchy”, in Re-imagining Democracy in the Mediterranean 1780-1860, edited by Mark Philp and Joanna Innes (Oxford: Oxford University Press, 2018), 31.
[9] Miriam Franchina, “Atlantic Ripples in the Mediterranean: Early Nineteenth-Century Patriotic Readings of Haiti in the Italian Peninsula,” Atlantic Studies (September 3, 2020): 1-21.
[10] The Pamphleteer, 1824.
[11] Alessandro Bonvini, “L’avventura nel Nuovo Mondo. Cospiratori, rivoluzionari e veterani napoleonici nella lotta per l’indipendenza della Nuova Granada, 1810-1830.” Contemporanea. Rivista di storia dell’800 e del ‘900, vol. 21, no. 1 (2018): 3-26.
[12] Ver Jürgen Habermas, The Structural Transformation of the Public Sphere: An Inquiry into a Category of Bourgeois Society (Cambridge, MA: MIT Press, 1989).
[13] John D. Bessler, The Birth of American Law: An Italian Philosopher and the American Revolution (Durham, NC: Carolina Academic Press, 2014); Juan Camilo Escobar Villegas, and Adolfo León Maya Salazar, “’Otras luces’ sobre la temprana historia politica de Colombia, 1780-1850: Gaetano Filangieri y ‘La ruta de Napoles a las Indias Occidentales’.” Co-herencia, vol. 3, no. 4 (2006): 79-111.
[14] Stefano Recchia and Nadia Urbinati, eds. A Cosmopolitanism of Nations: Giuseppe Mazzini’s Writingson Democracy, Nation Building, and International Relations (Princeton: Princeton University Press, 2009), 1-30.
[15] Ver Lucy Riall, Garibaldi: Invention of a Hero (New Haven: Yale University Press, 2007).
[16] Nir Arielli, From Byron to bin Laden: A History of Foreign War Volunteers (Cambridge, MA: Harvard UniversityPress, 2018), 37-65.
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