Compiègne
(Publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora, Porto Alegre, 15/11/2008)
Assistia à cobertura ao vivo do canal BBC World das eleições norte-americanas, na qual se debatia a iminente escolha de Barack Obama como novo presidente. Na bancada de jornalistas e comentaristas convidados, ninguém menos que o genial ensaísta e polemista inglês Christopher Hitchens. Na lapela de cada participante uma poppy, a flor da papoula que os britânicos costumam portar nesta época do ano para comemorar (no sentido de lembrar juntos) a semana que se encerra no próximo dia 11 de novembro, data do armistício da I Guerra, em 1918. As poppies ficaram populares porque se as associava às trincheiras e, por conseguinte, às centenas de milhares de vítimas da guerra. Na violência dos combates, as sementes da flor germinavam com facilidade nas crateras abertas pelas explosões, pintando de vermelho vivo os campos já ensangüentados de Flandres.
Pois não pude deixar de pensar em Hitchens, homem de opiniões fortes, intelectual pouco inclinado a reproduzir clichês populares, portando sua flor e, ao fazê-lo, compartilhando um sentido com milhões de britânicos. Nações como o Reino Unido pagaram um altíssimo preço pela defesa de sua posição no mundo. No caso, quase 1 milhão de britânicos morreu e pelas conseqüências da guerra. A guerra cala, com o perdão da expressão, fundo em uma nação, e com a mais sanguinária das guerras modernas não seria diferente.
Me parecia curioso, portanto, que na disputa eleitoral daquela noite a guerra fosse um dado secundário. Estava claro que as nações reivindicavam de forma diversa o lugar da guerra em sua vidas, mas me ocorreu que se, por um lado, as elevadas perdas britânicas em território estrangeiro, durante a guerra, permitiram criar uma memória respeitosa, familiar e compartilhada, de toda forma bastante consensual, em torno da grande guerra de 1914 – 1918, nada disso aparecia na guerra do Vietnã em que o republicano, John McCain, se projetara como herói. Ao contrário, forçoso é reconhecer que sobre esta se constituiu uma memória partida na população americana. Certo, não foi a ausência de consenso sobre os significados do Vietnã o que derrotou o candidato, mas ela ajuda a entender por que um país que está metido em duas frentes de batalha não se perfila atrás do herói disponível para entronizá-lo na presidência. Outras razões históricas foram mais determinantes que as memórias de guerra, para a eleição do primeiro presidente negro em 232 anos do Estado norte-americano, mas isto já seria outra história.
Mais mobilizado pela visão das poppies e pela evocação do 11 de novembro (data ignorada no Brasil, a não ser para sinalizar o célebre golpe preventivo do então Ministro da Guerra, general Lott, na defesa da posse de JK, e 1955) do que pela eleição norte-americana, me pus à caça de um objeto banal, que me veio à mente com as poppies e a evocação do armistício de 1918, e o qual prometera mostrar a alunos. Perdido entre velhos jornais e cartas, lá estava ele: um certo cartão-postal.
Com efeito, alguns meses antes comentara com alunos, durante uma explanação sobre os usos da memória pela política, sobre um insólito cartão-postal que eu havia enviado à minha mulher depois uma visita, em 1992, à Clareira do Armistício, sítio histórico francês situado em meio à floresta de Compiègne, 80 quilômetros ao norte de Paris. A foto no postal, que causou evidente espanto na destinatária, trazia Hitler, na companhia dos marechais Goering e Keitel, do ministro Ribbentrop, do General Jodl (que mais tarde assinaria a capitulação alemã, em maio de 1945) e demais membros do staff, mirando sério e fixamente uma inscrição em pedra. Tratava-se da pedra comemorativa ao 11 de novembro de 1918, situada junto ao vagão onde o herói de guerra francês, o Marechal Foch, impusera os termos do armistício da I Guerra aos representantes alemães. A inscrição na pedra, em um tom agressivo, de resto nada infreqüente na política das nações e nos monumentos políticos da primeira metade do século 20, poderia ser traduzida como: “Aqui sucumbiu, no dia 11 de novembro de 1918, o criminoso orgulho do império alemão, vencido pelos povos livres que ele tentara escravizar”.
Para mim, o postal era uma chave histórica importante para compreender a lógica da reprodução dos ressentimentos e rivalidades que havia marcado – e que seguiu marcando, de certa forma, e notadamente no plano cultural – a política dos estados, e que havia ajudado a fixar o núcleo das memórias nacionais européias na primeira metade do século passado. É claro, face a esse devaneio historiador, minha mulher, que não entendera nada da inesperada correspondência, preocupou-se em compreender o gesto: “Um postal com Hitler? ”.
Em 22 de junho de 1940, oito dias depois de suas tropas marcharem sobre Paris, Hitler escolheria esse lugar carregado de símbolos, a Clareira do Armistício, para impor, à sua vez, os termos de um segundo armistício, agora sobre a França do Marechal Pétain. No mesmo vagão onde os franceses impuseram duras condições ao Estado alemão, e na cadeira mesma que fora então ocupada por Foch, Hitler toma assento e impõe, quase 22 anos depois, suas condições a uma França de joelhos. No final deste dia, em que a grande política dos estados flertou com a memória das populações, o líder alemão mandou levar para Berlim o vagão que ficaria exposto, por uma semana, em frente à Porta de Brandemburgo. Desmontada em partes, a enorme inscrição em pedra que, como registra o postal, ele observara de maneira grave horas antes, também seria levada para a Alemanha. De uma só tacada, capturava o resto do orgulho nacional francês e expunha os símbolos do espírito vingativo que orientara os vitoriosos de 1918.
Na encenação do novo armistício, Hitler reencontrava nestes monumentos, em meio à floresta, alguns dos poderosos ingredientes que haviam embalado o extremismo nacionalista alemão dos anos 20 e a chegada ao poder nos nacional-socialistas em 1933: o ressentimento em relação aos vencedores da I Guerra, a impressão da injustiça sofrida, enfim, uma certa justificação moral para a agressividade alemã, como que a dizer: “nos odiaram, nos trataram injustamente, nossa vingança é legítima”. No jogo de espelhos que marca esse dia na floresta, o extraordinário poder do ressentimento tomou toda a sua dimensão como um dos grandes, senão o maior motor da conflitiva história européia do século 20.
À guisa de epílogo: em 1946, na Alemanha ocupada, militares franceses conseguiram recuperar, numa Berlim aos pedaços, partes da pedra comemorativa, e a repatriaram, voltando a expô-la na clareira no final dos anos 40. Quanto ao vagão, ele acabou destruído em Ohrdruf, Turíngia, antes da chegada das tropas norte-americanas, incendiado a mando do Führer nos últimos dias de um Reich que, imaginava sua Corte, duraria mil anos. Uma reprodução ocupa seu lugar hoje na clareira da floresta de Compiègne.
Flavio M. Heinz
Assistia à cobertura ao vivo do canal BBC World das eleições norte-americanas, na qual se debatia a iminente escolha de Barack Obama como novo presidente. Na bancada de jornalistas e comentaristas convidados, ninguém menos que o genial ensaísta e polemista inglês Christopher Hitchens. Na lapela de cada participante uma poppy, a flor da papoula que os britânicos costumam portar nesta época do ano para comemorar (no sentido de lembrar juntos) a semana que se encerra no próximo dia 11 de novembro, data do armistício da I Guerra, em 1918. As poppies ficaram populares porque se as associava às trincheiras e, por conseguinte, às centenas de milhares de vítimas da guerra. Na violência dos combates, as sementes da flor germinavam com facilidade nas crateras abertas pelas explosões, pintando de vermelho vivo os campos já ensangüentados de Flandres.
Pois não pude deixar de pensar em Hitchens, homem de opiniões fortes, intelectual pouco inclinado a reproduzir clichês populares, portando sua flor e, ao fazê-lo, compartilhando um sentido com milhões de britânicos. Nações como o Reino Unido pagaram um altíssimo preço pela defesa de sua posição no mundo. No caso, quase 1 milhão de britânicos morreu e pelas conseqüências da guerra. A guerra cala, com o perdão da expressão, fundo em uma nação, e com a mais sanguinária das guerras modernas não seria diferente.
Me parecia curioso, portanto, que na disputa eleitoral daquela noite a guerra fosse um dado secundário. Estava claro que as nações reivindicavam de forma diversa o lugar da guerra em sua vidas, mas me ocorreu que se, por um lado, as elevadas perdas britânicas em território estrangeiro, durante a guerra, permitiram criar uma memória respeitosa, familiar e compartilhada, de toda forma bastante consensual, em torno da grande guerra de 1914 – 1918, nada disso aparecia na guerra do Vietnã em que o republicano, John McCain, se projetara como herói. Ao contrário, forçoso é reconhecer que sobre esta se constituiu uma memória partida na população americana. Certo, não foi a ausência de consenso sobre os significados do Vietnã o que derrotou o candidato, mas ela ajuda a entender por que um país que está metido em duas frentes de batalha não se perfila atrás do herói disponível para entronizá-lo na presidência. Outras razões históricas foram mais determinantes que as memórias de guerra, para a eleição do primeiro presidente negro em 232 anos do Estado norte-americano, mas isto já seria outra história.
Mais mobilizado pela visão das poppies e pela evocação do 11 de novembro (data ignorada no Brasil, a não ser para sinalizar o célebre golpe preventivo do então Ministro da Guerra, general Lott, na defesa da posse de JK, e 1955) do que pela eleição norte-americana, me pus à caça de um objeto banal, que me veio à mente com as poppies e a evocação do armistício de 1918, e o qual prometera mostrar a alunos. Perdido entre velhos jornais e cartas, lá estava ele: um certo cartão-postal.
Com efeito, alguns meses antes comentara com alunos, durante uma explanação sobre os usos da memória pela política, sobre um insólito cartão-postal que eu havia enviado à minha mulher depois uma visita, em 1992, à Clareira do Armistício, sítio histórico francês situado em meio à floresta de Compiègne, 80 quilômetros ao norte de Paris. A foto no postal, que causou evidente espanto na destinatária, trazia Hitler, na companhia dos marechais Goering e Keitel, do ministro Ribbentrop, do General Jodl (que mais tarde assinaria a capitulação alemã, em maio de 1945) e demais membros do staff, mirando sério e fixamente uma inscrição em pedra. Tratava-se da pedra comemorativa ao 11 de novembro de 1918, situada junto ao vagão onde o herói de guerra francês, o Marechal Foch, impusera os termos do armistício da I Guerra aos representantes alemães. A inscrição na pedra, em um tom agressivo, de resto nada infreqüente na política das nações e nos monumentos políticos da primeira metade do século 20, poderia ser traduzida como: “Aqui sucumbiu, no dia 11 de novembro de 1918, o criminoso orgulho do império alemão, vencido pelos povos livres que ele tentara escravizar”.
Para mim, o postal era uma chave histórica importante para compreender a lógica da reprodução dos ressentimentos e rivalidades que havia marcado – e que seguiu marcando, de certa forma, e notadamente no plano cultural – a política dos estados, e que havia ajudado a fixar o núcleo das memórias nacionais européias na primeira metade do século passado. É claro, face a esse devaneio historiador, minha mulher, que não entendera nada da inesperada correspondência, preocupou-se em compreender o gesto: “Um postal com Hitler? ”.
Em 22 de junho de 1940, oito dias depois de suas tropas marcharem sobre Paris, Hitler escolheria esse lugar carregado de símbolos, a Clareira do Armistício, para impor, à sua vez, os termos de um segundo armistício, agora sobre a França do Marechal Pétain. No mesmo vagão onde os franceses impuseram duras condições ao Estado alemão, e na cadeira mesma que fora então ocupada por Foch, Hitler toma assento e impõe, quase 22 anos depois, suas condições a uma França de joelhos. No final deste dia, em que a grande política dos estados flertou com a memória das populações, o líder alemão mandou levar para Berlim o vagão que ficaria exposto, por uma semana, em frente à Porta de Brandemburgo. Desmontada em partes, a enorme inscrição em pedra que, como registra o postal, ele observara de maneira grave horas antes, também seria levada para a Alemanha. De uma só tacada, capturava o resto do orgulho nacional francês e expunha os símbolos do espírito vingativo que orientara os vitoriosos de 1918.
Na encenação do novo armistício, Hitler reencontrava nestes monumentos, em meio à floresta, alguns dos poderosos ingredientes que haviam embalado o extremismo nacionalista alemão dos anos 20 e a chegada ao poder nos nacional-socialistas em 1933: o ressentimento em relação aos vencedores da I Guerra, a impressão da injustiça sofrida, enfim, uma certa justificação moral para a agressividade alemã, como que a dizer: “nos odiaram, nos trataram injustamente, nossa vingança é legítima”. No jogo de espelhos que marca esse dia na floresta, o extraordinário poder do ressentimento tomou toda a sua dimensão como um dos grandes, senão o maior motor da conflitiva história européia do século 20.
À guisa de epílogo: em 1946, na Alemanha ocupada, militares franceses conseguiram recuperar, numa Berlim aos pedaços, partes da pedra comemorativa, e a repatriaram, voltando a expô-la na clareira no final dos anos 40. Quanto ao vagão, ele acabou destruído em Ohrdruf, Turíngia, antes da chegada das tropas norte-americanas, incendiado a mando do Führer nos últimos dias de um Reich que, imaginava sua Corte, duraria mil anos. Uma reprodução ocupa seu lugar hoje na clareira da floresta de Compiègne.
Flavio M. Heinz
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