Memórias de 64: esquecimento e oportunismo


(Publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora, Porto Alegre, em 31/7/2004)

A onda de debates suscitada pela passagem dos 40 anos do golpe de 1964 teve mais um episódio na semana passada, em Pelotas, por ocasião do encontro dos pesquisadores gaúchos filiados à Associação Nacional de História. Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas, Marcelo Ridenti, da Unicamp, e Beatriz Loner, da UFPel, levantaram questões inquietantes, relacionadas à memória dos acontecimentos de 64 e do Regime que se seguiu, bem como a seus desdobramentos e às formas de apropriação na opinião pública atual. Embora o debate de Pelotas tenha girado em torno dos riscos da instrumentalização política, no campo da opinião, dos resultados do debate acadêmico, particularmente no caso do estudo da ação das esquerdas armadas, ele não deixou de tocar em outro tema que julgo central para a pesquisa sobre 1964: o do processo de invisibilização das redes civis de apoio ao golpe e ao Regime.

De forma geral, a opinião sobre o Regime Militar revela uma extraordinária unidade de posições, publicamente assumidas nos jornais, emissoras de rádio e televisão, na sua esmagadora maioria orientadas pelo repúdio à ditadura e pela defesa das renascidas instituições democráticas. Essas posições são em si louváveis, mas sua intensidade e sua disseminação não escondem um detalhe perturbador: não existem no debate público, com raríssimas exceções, defensores do Regime defunto. Ora, ao menos que incorramos no erro de imaginar um regime como acidente histórico, como um pequeno deslize da democracia de 1946, não há por que aceitarmos como natural o quase silêncio dos vencedores de 1964 – militares e civis – sobre sua própria história. 

Ainda na seqüência direta das comemorações, em abril passado, após ter assistido a uma entrevista do vereador Pedro Américo Leal à RBS TV, na qual este defendia as ações relacionadas ao golpe e ao Regime que se seguiu, perguntou-me um estudante, não sem certa súplica de cumplicidade: 

– Como é possível que ele diga aquilo?

Ao que retruquei, para seu espanto:

– Como é possível que apenas ele diga aquilo?

O que procurei enfatizar naquele momento é que o dado surpreendente no debate atual sobre o golpe é a raridade com que se apresentam publicamente seus defensores. Ora, a ditadura durou 21 anos, quase metade destes com razoável apoio público (os tempos eram outros, mas o marketing do Regime já estava lá, no ufanismo da bola, das obras triunfais e das canções patrióticas). Nela – e em função dela – se fizeram ou foram catapultadas carreiras políticas, se construíram trajetórias públicas e privadas, amizades e fidelidades se constituíram entre os diferentes níveis do poder fardado, associações, homens de negócio e outros setores da sociedade. A pergunta que se impõe e, penso, para a qual não poderão faltar os profissionais da história e da memória, é a seguinte: para onde foram todos? Onde estão aqueles que militaram política e ideologicamente pelo Regime?

Minha geração cresceu sob uma ditadura que se mostrava onipresente na vida do país, que usou da força para impor-se a cada vez que a sociedade deu sinais de querer retomar as rédeas do processo: por ocasião da extinção dos partidos, em 1965, do AI-5, em 1968, dos anos Médici e da repressão generalizada, do pacote de abril de 1977 e durante o lento processo de abertura... Essa ditadura teve seus intelectuais, seus burocratas, sua imprensa, sua mídia, não se manteve ao longo do tempo sem certos apoios na sociedade na qual se incrustara. Onde estão eles?

Em países que passaram por processos análogos ao brasileiro, percebem-se disputas políticas em torno do legado dos regimes autoritários. No Brasil, quase nada. Não há herdeiros interessados no espólio do Regime. Neste aspecto, não deixa de ser curioso ver, por exemplo, a grande imprensa paulistana e carioca que tão enfaticamente clamara pela intervenção militar apresentar, em seus websites, uma imagem hoje depurada e politicamente correta daqueles acontecimentos. 

Poderíamos estar tentados a perceber aí uma característica positiva da vida brasileira, uma vocação para a superação das mágoas e para o esquecimento. Acho que há um erro nessa perspectiva, um grave erro. Certo, é sempre tranqüilizador que as ditaduras apresentem péssima cota de popularidade e que uma certa dose de estigmatização do autoritarismo político nos ajude constantemente a lembrar as virtudes e os ideais da democracia. Ocorre que o esquecimento engendra uma armadilha perigosa, que consiste em legar às novas gerações a percepção do Regime de 1964 como uma excrescência histórica, uma aventura sem apoios ou amigos. Essa é uma mensagem sedutora, mas absolutamente falsa. Ela não nos esclarece quase nada sobre o período, tampouco reconforta as vítimas do arbítrio, apenas ajuda a isentar de vínculos e responsabilidades aqueles que, tendo vivido do e pelo Regime – mas sem o ônus de ter uma farda guardada no armário –, apressaram- se em tomar novos ares e desfazer-se de uma memória incômoda.

Um começo de resposta sobre as razões do esquecimento nacional e da ausência de herdeiros que assumam o patrimônio político e moral do Regime passa, a meu ver, pela compreensão de uma certa volatilidade de posições e princípios, comum a amplos setores da elite política brasileira de então – mas para os quais não teríamos dificuldade de encontrar exemplos nos dias que correm. Abandonados ao pragmatismo e à caça às oportunidades políticas, mas também, é verdade, influenciados pela arraigada idéia de conciliação presente na política brasileira, muitos apoiadores migraram com facilidade para as posições emergentes e menos comprometedoras situadas no
campo oposicionista. Assim, à medida que, durante o governo Geisel e sobretudo a partir da transição para o governo Figueiredo, a imagem do Regime começa a derreter frente à população, um bom número de novos- democratas abandona as hostes da “Revolução” para um espaço político de novas e promissoras possibilidades.

Essa é uma explicação. A outra poderia ser encontrada na forma melancólica com a qual o Regime encaminhou-se para o fim, com um presidente implorando pateticamente pelo seu próprio esquecimento. Sem conseguir renovar-se ou propor alguma outra pactuação política à sociedade, o Regime definhou, desprestigiado ao extremo, abandonando quaisquer pretensões em constituir uma história e uma memória edificantes de si próprio. No impressionante trabalho de recuperação da memória sobre esse período, empreendido pelo Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, centenas de horas de entrevistas gravadas com lideranças militares da época mostram a percepção daqueles que haviam constituído a espinha dorsal do Regime. Ali se percebe escasso arrependimento quanto à deflagração do processo golpista, bem como certo grau de dissensão entre ex-chefes militares acerca da responsabilidade das Forças Armadas em temas quentes, como a tortura e a repressão política.

Curiosamente, 40 anos depois se conhece razoavelmente bem os meandros da corporação militar e o ambiente político que embalou a conspiração na caserna, mas se sabe ainda muito pouco sobre a natureza e a dimensão das redes sociais que deram guarida e ajudaram a conferir alguma legitimidade aos tanques de março. O tecido social civil e burocrático do Regime Militar segue sub-explorado como objeto da pesquisa histórica, e talvez esteja aí uma oportunidade, uma verdadeira agenda de pesquisa para as novas gerações de pesquisadores que, tendo nascido nos seus últimos anos, ou mesmo após a transição de 1985, têm lotado auditórios e mostrado crescente interesse pelo estudo da última ditadura da história do país.

Flavio M. Heinz

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