A política regional como laboratório da Era Vargas


(Publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 28/8/2004)


Passados 50 anos do suicídio que pôs fim à trajetória da mais expressiva liderança política da história contemporânea brasileira, o mês de agosto tem sido generoso na evocação da memória de Getúlio Dornelles Vargas. Vários eventos nas duas últimas semanas dissecaram a anatomia política e intelectual daquele que, tendo sido deputado na Assembléia dos Representantes, deputado federal, ministro de Estado, presidente do Estado do Rio Grande do Sul, chefe do governo provisório, presidente constitucional, ditador em 1937, senador e, por fim, no último e derradeiro mandato de sua vida, presidente eleito em 1950, permanece, meio século depois de sua morte, o personagem central do processo de modernização da vida brasileira no século 20.

A vitalidade da programação alusiva aos 50 anos do suicídio revela o grande interesse que historiadores e outros pesquisadores seguem atribuindo à chamada Era Vargas, em geral, e ao personagem de Getúlio, em particular. Contudo, esse é um interesse marcado por uma apropriação parcial do mito, seletiva, evocadora do peso de condicionantes políticos nacionais e internacionais, mas relativamente pobre na apresentação das variáveis regionais que marcaram a formação do homem político Vargas. Assim, por exemplo, no último dia 11, em entrevista concedida ao jornalista Ruy Carlos Ostermann, na Rádio Gaúcha, o historiador Boris Fausto, um dos mais conhecidos – e lidos – autores de História do país, discorreu por quase uma hora sobre diferentes facetas do mito Vargas, sem contudo fazer a menor alusão ao peso de suas origens políticas regionais na conformação de uma carreira exitosa na política nacional.

Vargas aparece nestas situações como fruto de um certo acaso, de um entreato da política federal marcado por alguns eventos maiores, em parte “auto-explicativos”, como a crise de 1929. Sua agenda de governo é freqüentemente vista como resultado das opções e influências políticas dos anos 1930. A sedução da força política do fascismo é recuperada como origem direta do Estado Novo; e a Carta del Lavoro, como a origem última da legislação trabalhista. Se é certo que nessas associações há parte de verdade, não é contudo possível entender as iniciativas políticas varguistas a partir apenas dos condicionantes externos, sob pena de perder-se o fio da meada, a linha explicativa que conecta a dinâmica política responsável pelas transformações nacionais pós-1930 com os fundamentos da política regional gaúcha da Primeira República.

Com efeito, germinando estavam, já nos anos 1910 e 1920, nas políticas do Partido Republicano Riograndense – ao qual Vargas fora filiado e onde alavancou sua carreira pública –, boa parte das iniciaticiativas políticas e administrativas, de cunho, é verdade, autoritário, mas também reformista e intervencionista (pelo menos em sua fase tardia), que “surpreenderiam” o país a partir de 30.

Alfredo Bosi já alertara, num célebre artigo que compõe sua Dialética da Colonização, para a importância da dimensão regional e sobretudo para o peso do pensamento positivista incorporado à doutrina castilhista, na perspectiva reformista e social da Revolução de 30. Da mesma forma, Pedro Cezar Dutra Fonseca investigou a fundo a formação do pensamento de Vargas e sua influência no processo de modernização do Estado e expansão do capitalismo brasileiro. Para Fonseca, no pensamento positivista disseminado entre a elite gaúcha da Primeira República se encontraria a gênese do desenvolvimentismo brasileiro pós-30. Recentemente, as teses de Luiz Roberto P. Targa, Le Rio Grande do Sul et la Création de l’État Développementiste Brésilien, e de Ronaldo Herrlein Jr., Rio Grande do Sul, 1889-1930: Um Outro Capitalismo no Brasil Meridional?, buscaram restabelecer o sentido da ação do estado rio-grandense por meio de sua agenda de intervenção e políticas públicas. Fundamentados em farta documentação de natureza econômica, os autores sustentaram a originalidade e o caráter socialmente avançado das políticas públicas dos governos republicanos gaúchos, conectando-as à presença doutrinária do positivismo na formação de seus dirigentes.

Em contraponto a essa perspectiva e criticando seu caráter particularista, Gunter Axt apontou em Gênese do Estado Burocrático-Burguês no Rio Grande do Sul (1889-1929), com muita propriedade, para a complexidade do processo político regional, marcado pelos arranjos políticos locais e pela variável coronelística. Tal como os autores citados acima, o foco da atenção de Axt são as políticas públicas do Rio Grande do Sul, mas, numa posição diametralmente oposta a deles, sugere que está na análise da ação dos grupos de pressão e da acomodação entre setores dirigentes e frações da classe do dominante, e não na filiação doutrinária ao positivismo, a chave para a compreensão das origens do intervencionismo público na Primeira República.

Para além dessas contribuições, é possível afirmar que apesar de Vargas não ser, com efeito, o mais ardente seguidor de Júlio de Castilhos entre os republicanos gaúchos, sua formação se deu exatamente no ambiente autoritário e centralizador da política rio-grandense legado pela Constituição castilhista de 14 de julho de 1891. Nas palavras de Sérgio da Costa Franco, no pequeno e belo ensaio biográfico Getúlio Vargas em Três Tempos, “como administrador e como político, é fundamental vê-lo como um representante típico do castilhismo”. De fato, conhecia perfeitamente as possibilidades oferecidas a uma gestão de conflitos patrocinada pelo Estado e entendia como poucos as virtudes da centralização das políticas do Estado e da contenção forçada dos grupos de oposição. Castilhista, positivista, autoritário, reformista, liberal ou antiliberal são todos rótulos possíveis, mas insuficientes, parciais, efêmeros, sugerindo identidades políticas que nunca em verdade atuaram isoladas, mas que sempre apareceram compostas, em permanente movimento, acionadas e instrumentalizadas segundo as necessidades e interesses presentes na disputa política.

Vargas só chegou ao poder em 30 por que era um homem de dentro do sistema político, capaz de prever os riscos presentes em ousar mexer em cláusulas pétreas do regime oligárquico. Foi bem-sucedido em desmontar a estrutura da Velha República sobretudo porque soube vislumbrar as enormes possibilidades oferecidas pela centralização de poderes e pela ampliação da presença do Estado federal na vida do país. Além disso, soube ser um extraordinário intérprete do clamor reformista e modernizador presente na fermentação tenentista. Uma vez no poder, teve o timing das oportunidades políticas, seja porque percebeu que na contenção da fronda oligárquica de 1932 se jogava não apenas o destino da Revolução de 30, mas sua própria sobrevivência política; seja porque investiu todos os esforços na rápida ampliação do aparato estatal e na implementação de um sistema de controle sindical, decisão que acabaria pesando a seu favor já na Constituinte de 1934; seja, enfim, porque anteviu que o enquadramento e a domesticação do ímpeto tenentista, já completado na primeira metade da década, eram estrategicamente vitais para a continuidade de seu projeto político.

O Rio Grande participou da formação do chefe do Governo Provisório pelo viés da ideologia, é certo, mas também pela “educação” particular que o campo político regional podia lhe oferecer. São, com efeito, numerosos os indícios de que tanto o ambiente intelectual, marcado pela presença do positivismo político, quanto os padrões de relacionamento do Partido Republicano Rio-grandense com a oposição federalista e, através de sua agenda de governo, com toda a sociedade regional, concorreram para definir o perfil de ação da liderança varguista. A experiência nacional em curso a partir 1930 teve, assim, como laboratório, a política rio-grandense da Primeira República, consubstanciada no trinômio autoritarismo, intervenção e reforma.

Flavio M. Heinz


Crédito foto:
© Acervo da Fundação Getúlio Vargas. O escultor Jo Davidson esculpindo o busto de Getúlio Vargas. Brasil, 1941.
Em 1941, o presidente norte-americano Franklin Roosevelt enviou ao Brasil o escultor Jo Davidson para esculpir um busto de Getúlio Vargas. Na época, os EUA mandaram que o artista esculpisse os bustos de onze presidentes da América do Sul. O busto de Vargas foi exposto em 1942, na National Gallery of Art de Washington.

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