Desejo de compreensão

(Publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora, Porto Alegre, em 04/2/2006)

 A polêmica envolvendo o filme Munique, de Steven Spielberg, renova os termos de uma discussão ocorrida quando do lançamento de outro filme do mesmo diretor, A lista de Schindler, em 1993. A principal crítica que lhe é formulada diz respeito ao caráter tolerante, benevolente talvez, com que o cineasta teria tratado os militantes extremistas palestinos – terroristas ou combatentes, a escolha dos termos não é um elemento menor neste debate – envolvidos no ataque e assassinato de atletas da delegação israelense nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972.

O filme se ocupa da análise de um território que não nos é habitual, interstício entre os domínios da lei e da política, um não-lugar onde não vigora direito ou diplomacia, mas ódio, violência auto-justificada e cínico pragmatismo. Lá onde há enfrentamentos que não podem ser assumidos pelos Estados, por impossibilidade ou por interesse, se desenrola uma guerra na epiderme, micro-conflito de superfície entre nações ou entre nações e grupos engajados em levar a cabo projetos nacionais. Nesse mundo, primitivo e violento, furtado ao direito, há argumentos para todos os lados. A conversa sobre o sentido da luta palestina pelo retorno à terra de origem – mantida entre o protagonista Avner, jovem agente do Mossad convertido em caçador dos militantes do Setembro Negro, e seu rival palestino – é reveladora da complexidade desta trama. Inverossímil e implausível, dois pecados da narrativa de fundo histórico, a cena adquire pleno sentido se tomada pela perspectiva de autonomia deste não-lugar ocupado por militantes, grupos extremistas, terroristas e serviços de inteligência.

Munique apresenta uma sucessão de cenas interessantes, como a conversa cordial do protagonista com um alto responsável palestino em uma sacada de hotel, minutos antes do quarto deste ir pelos ares numa explosão. Ou a menção a Ehud Barak, futuro primeiro-ministro de Israel. Travestido de mulher, o jovem oficial israelense lidera a ação de busca e assassinato de três líderes do Setembro Negro, em Beirute. Ao situar em sua trama um oficial que depois se tornaria a principal liderança política de Israel e o articulador, com Arafat, dos fracassados acordos de Camp David, Spielberg oferece um exemplo generoso da continuidade natural com que Israel viveu a transição dessa política na epiderme para a grande política do Estado, legitimando-a e autorizando-a.

Essa, que me parece ser a riqueza do filme, a complexidade das principais personagens, tomadas a todo momento por um desejo real que as mobiliza (a vingança), e o difícil enquadramento moral de suas ações, acabou despertando a inconformidade daqueles que vêem como inaceitável o nivelamento entre esses papéis, o dos terroristas – encarnação do mal – e aquele de seus perseguidores.

Spielberg já havia sofrido fortes críticas por A lista de Schindler, acusado de tratar um tema de gravidade ímpar, o Holocausto, como mais uma peça de cinema. O que era indizível e inenarrável – o horror dos campos de concentração – não fosse feito pela boca de suas vítimas, não poderia ser estetizado e glamourizado pela indústria cinematográfica. Intelectuais e cineastas do porte de Claude Lanzmann, realizador do longo e respeitado documentário Shoah (1985), obra que se situa na linhagem de outro documentário denso sobre o tema, Nuit et brouillard, de Alain Resnais, realizado três décadas antes, não perdoaram o despudor de Spielberg em sua incursão na representação hollywoodiana dessa história.

A crítica ao filme atual parece se deslocar da preocupação com a estetização do horror para centrar-se na condenação à equiparação ou ao nivelamento moral dos papéis de agentes israelenses e militantes palestinos. Talvez o desconforto esteja exatamente na idéia de representar humanamente o mal, no caso os militantes do Setembro Negro. Essa é possivelmente uma necessidade para muitos entre nós, que não suportam a idéia de que o mal seja exercido por um representante da própria espécie (não há aqui mera coincidência com o uso corrente de termos como “monstros” ou “animais” na denúncia aos extremismos políticos de todas as cores). Mas essa operação de desumanização, logo de des-historicização do “mal”, compreensível pela dor e pelo ressentimento produzido em indivíduos e coletividades, não ajuda a entender as escolhas e os processos, embaralha os dados.

Uma avaliação semelhante ocorreu por ocasião da exibição do filme A queda, de Olivier Hirschbiegel, em 2005. Nele, o retrato em huis clos, sufocante, do bunker de Hitler, com a exposição de uma certa intimidade do terrível ditador nos momentos que antecedem o colapso final do delírio nazista sugeriu a alguns uma insuportável cumplicidade, aceitação do inaceitável, isto é, a possibilidade de se querer ver o homem por trás do monstro. Ora, a questão é exatamente essa. É preciso perscrutar o homem por trás do monstro, pois só assim é possível decodificá-lo, entendê-lo e evitá-lo. Embora essa não seja uma idéia agradável, é preciso repetir sempre que o nazismo não foi a invenção de um bando de malucos, mas uma combinação explosiva de elementos como ideologia racial, anti-semitismo, nacionalismo extremado, controle da informação, propaganda, expansionismo econômico, militarização, violência política e ressentimento, todos estes elementos instrumentalizados politicamente. A condição psíquica de Hitler explica muito pouco sobre o delírio nazista. Era maluco? Provavelmente. Mas o estrago causado por esse maluco em particular foi potencializado enormemente pela perigosa combinação referida acima.

O que me parece importante é tentar deixar em segundo plano as explicações sobre a psiquê ou o sobre o caráter “inumano” dos ditadores e dos extremistas para nos interessarmos pelos mecanismos de sua gênese social e política – o que não os torna mais palatáveis, é certo, mas que pelo menos nos ajuda a decifrar os mecanismos de seu sucesso político e nos alerta para a repetição de situações capazes de gerar novos extremismos.

Para entender as tramas da história na sua complexidade, é preciso ir buscar a história em cada um, evitando a tentação (e mesmo a necessidade íntima) de demonização de carrascos e algozes. Tentar racionalizar aquilo que nos é tão doloroso que quase não podemos enunciar não implica aquiescência ou simpatia, mas tão somente o desejo de compreender e, compreendendo, talvez intervir. Spielberg não agradou a todos, é certo, mas esse é o menos previsível de seus filmes, a mais complexa e certamente a mais verossímil de suas obras “históricas”.

Flavio M. Heinz

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